O problema do nome

Joëlle-Marie Declercq
4 min readJul 18, 2019

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Meu pai morreu na madrugada do dia 10 de julho, entubado e sedado na UTI. Foi uma morte barulhenta. As máquinas que marcavam sua pressão sanguínea, os batimentos cardíacos e mais outras coisas que não me diziam nada emitiam bipes e ruídos constantes, avisando que tudo aquilo estava em queda. Lá perto do fim, outra máquina que indicava a quantidade de remédios paliativos e antibióticos também fez barulho. Ao fundo, uma terceira máquina assoprava oxigênio dentro dele. Segundos após ele morrer, o peito do meu pai ainda subia e descia por causa do oxigênio.

Meu avô materno morreu na UTI três anos atrás. Minha avó, mãe do meu pai, morreu na UTI em 2018. Agora, meu pai terminou sua vida em um leito hospitalar. Parece a ordem natural das coisas, morrer em um ambiente asséptico e tão impessoal. Mas isso já foi discutido milhares de vezes por pessoas muito mais informadas do que eu. Porém, gostaria só de deixar registrado que o costume dos enfermeiros e médicos de passar álcool em gel nas mãos após encostar em qualquer coisa na UTI é contagiante, tanto é que a primeira coisa que fiz após meu pai morrer foi passar álcool em gel na mão assim como aproveitei para pegar um pouquinho mais antes de sair do hospital. Bactérias, talvez.

Morrer em hospital é barulhento e solitário, mas facilita o processo das coisas para os que ficam. Liberar um corpo para ser velado é menos complicado. Sim, menos, porque ainda envolve você levar documentos para a administração do hospital, pegar o atestado de óbito e dirigir até um cartório 24 horas na Tiradentes para oficializar que alguém morreu. Minha madrasta fez esse trabalho braçal sozinha.

Quando seu pai morre, por mais que o relacionamento de vocês não fosse lá aquelas coisas, infelizmente o mundo não para. Os ônibus continuam a circular, carros param no cruzamento bloqueando o trânsito e o telemarketing da TIM ainda te liga pedindo o pagamento de uma parcela que já foi paga mês passado. Mas você é egoísta, você se dá esse direito de ser egoísta pois porra, meu pai morreu, porra. Por isso você ignora que vive na cidade com a maior frota de carros do mundo e pede um táxi perigosamente em cima da hora e conta que chegará no velório 20 minutos antes da sua família.

Mas o mundo não para. Uma hora e pouco no trânsito. Radial Leste travada. Carro pra tudo quanto é lado. No caminho, percebi que arrumei um pouco demais para o velório do meu pai, me permitindo até fazer um delineado bonito que nunca mais conseguirei reproduzir. No táxi, conversando com meu namorado, pensei se não estava passando dos limites indo para o velório do meu pai com um delineado perfeito.

Chegando no velório descubro que o mundo não para quando seu pai morre, mas serviço funerário municipal sempre esteve parado desde 1830 e ninguém sabe quem é seu pai, que o velório dele estava marcado para às 18 horas e muito menos onde está o seu pai. Alguns familiares estavam parados na entrada com olhos arregalados. Cadê o corpo? Imaginei brevemente meu pai em um caixão sendo jogado de um lado para outro até ser rastreado em um IML obscuro em Embu.

Os caras da administração eram chucros do jeito que funcionários públicos mal pagos que lidam todo dia com família chorando devem ser. Logo de cara, informaram que não encontraram o nome do meu pai no sistema, muito menos na lista de falecidos esperados até o fim do dia. Uma mulher ríspida tentou localizar meu pai num computador de tubo onde um moderno Windows 97 ainda rodava. Não achei, ela disse. Os dois homens da administração também não acharam. Quase gritei não acharam o caralho cadê a porra do meu pai, mas me contive graças a deus.

Os 10 minutos que estive dentro da administração feia do Cemitério São Pedro pareceram 5 horas. Porém, foi o tempo para uma luz descer naquele local e um dos caras olhar melhor a lista de defuntos do dia e perceber que o nome do meu pai estava escrito completamente errado. Não era sequer uma aproximação. Era um novo nome que não fazia sentido em nenhum lugar. Contei só uma vogal. Ele só descobriu porque o bairro onde meu pai morreu bateu com o bairro escrito na ficha e o horário do velório.

Provavelmente, depois da notificação da morte, o cartório ou o hospital ligou para a administração, leu o nome do meu pai do jeito que acharam que fazia sentido e o cara do cemitério anotou do jeito que fazia sentido pra ele.

Pedi pra ele escrever correto na lista. Tem um “c” antes da letra “q”. É só o “q”, não tem o “ue” depois. Não faz diferença, ele tá vindo. Ok, tá mas escreve aí porque já deu merda uma vez. Eu falei isso pra ele, mas sem a parte do palavrão. Coloquei o palavrão aqui para dar mais efeito. Mesmo assim ele disse que não fazia diferença.

O corpo do meu pai chegou nesse espaço de tempo. No atestado de óbito, erraram o nome dele também. Nem quis ler como soletraram o nome na plaquinha que indicava as salas de velório.

Eu detestava meu nome quando era pequena. Tinha até raiva dos meus pais por terem escolhido um nome tão brega e nada brasileiro. Meu nome só tem uma letra “a” e isso me deixava paranoica quando eu era criança porque achava que nome que não tinha muita letra “a” era coisa de menino. Mais velha, aprendi a gostar dele e também aprendi a desencanar com as variações que inventavam para o meu nome. Tudo bem, tudo bem, não ligo, tá errado mas pode deixar assim.

Depois de ajudar a carregar o caixão do meu pai para a sala de velório, depois de checar se a boca dele foi colada ou costurada (acho que foi costurada) para escrever no formulário da funerária que foi realizada a tanatopraxia, uma coisa só ficou piscando em letras neon na minha cabeça.

Por favor, quando eu morrer certifiquem-se que meu nome está escrito de forma correta em todos os documentos. Por favor.

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Joëlle-Marie Declercq

Gosto de escrever sobre pessoas ruins e situações desagradáveis.