21

Joëlle-Marie Declercq
5 min readMay 28, 2020

--

O policial saiu para a rua segurando a última criança escondida na casa de máquinas. Todo mundo viu os olhinhos arregalados, como duas jabuticabas, inchados de choro. O choro, graças a deus, foi abafado pela máscara improvisada de uma camiseta antiga com pequenos desenhos de personagens do Pokémon. Ninguém sabia de quem era a criança e não importava mais porque quando não se obedece as ordens dadas, já não importa mais se é velho, criança, mulher e o que for. Pra muita gente, o que mais assusta é a normalidade que logo após de uma coisa muito ruim. Todos os dias, uma ruptura nova aprece na vida de todo mundo, seguida de uma calmaria assustadora. Um dia você olha pra rua e vê seu vizinho largado no meio-dia esperando ser recolhido, mas cinco minutos depois o carro vendendo dúzia de ovos passa debaixo da sua janela com o alto falante ligado. Faz tempo que deixamos de contar os mortos, porque os jornais só podem escrever sobre os vivos. Os mortos devem ser esquecidos o mais rápido possível. Sabemos também que a polícia responde para si mesma, especialmente depois que ficou proibido ficar trancado em casa por mais de 14 horas. Nos fins de semana, baixa pra 12. Agora, policiais sem identificação e de máscara, buscam por conta própria os suspeitos de não respeitarem a ordem social. Mas não há nada oficial, nada estampado em letra fria ou passando durante o intervalo de programas da televisão para nós avisar. Mas todo mundo sabe. Circula em todos os celulares. No mercado comentam, discutem nos corredores vazios das empresas. Quem se trancar em casa será perseguido, julgado e condenado no mesmo minuto e pela mesma pessoa. Isso faz alguns meses. Claro que no comecinho houveram os dissidentes, aqueles que confiaram na desorganização e na falta de direcionamento e seguiram em casa, escondidos, até uma hora o medo começar a dominar e todo mundo desconfiar de todo mundo. A criança mal conseguia formar frases, talvez a única coisa que tinha em comum com o policial que a arrancou do prédio pelos cabelos. Ele se comunicava em grunhindos. Ninguém tinha coragem de pedir para ele parar. Pegar leve. Alguns moradores do prédio olhavam para a cena do outro lado da rua, usando máscaras, e dava pra saber que foram eles quem caguetaram a situação toda. Uma semana antes, rodou no WhatsApp um relatório supostamente assinado pelo Ministério da Saúde relatando que o problema mesmo era o pessoal que se trancava em casa porque carregavam a doença e transmitiam a quem estava saudável quando iam ao mercado. Não fazia sentido, mas haviam alguns áudios que mencionavam um caso do Pará que foi exatamente assim. Não fazia sentido mesmo, mas depois de um tempo fez. Era a verdade. Em uma semana, uma velha confinada contaminou um prédio inteiro por causa do esgoto e do elevador, segundo o relatório. Se ela tivesse saído de casa, teria morrido antes. O que seria bom para todo mundo. Mas a doença parou de preocupar um pouco porque muita gente está com fome e com raiva. Na rua, homens de terno mostram documentos de trabalho, alguns dizendo que são advogados e engenheiros, e perguntam se podem fazer um bico qualquer em troca de um almoço. Em caso de morte, a família é obrigada a fazer enterro completo. No começo, todo mundo tinha medo da aglomeração e preferiram deixar a mãe, o pai, o filho, mortos em casa mesmo. Até não ter mais jeito e terem qhe chamar o rabecão e enterrar de caixão fechado. Cada mês a gente espera a noticia de que finalmente grande parte da população está imunizada e a doença não tem mais para onde ir. Para isso, é preciso bater uma certa meta de mortos e infectados para assim declarar o país livre da doença. Mas também ninguém sabe de muita coisa porque só pode falar de quem se curou, de quem trabalha e de quem não adoeceu. Não há nada oficial que nos proíba de alguma coisa. Na verdade, se mais de duas pessoas falam a mesma coisa, é oficial. Não faz sentido, mas pra gente tá fazendo. A questão é respeitar as ordens. Por isso, quem começou a ficar em casa passou a criar problemas com os vizinhos que saíam de dia e notavam que o apartamento do lado estava sempre cheio, mesmo nas horas obrigatórias de circulação na rua. Dá raiva porque todo mundo tem medo de sair de casa e ficar na rua, mas pior ainda quando você descobre que tem gente não saindo. É ruim quando percebe que é o único trouxa obedecendo ordens assim. Ninguém quer morrer sozinho, largado na rua, só porque quis ser correto. O prédio era um dos vários onde se sabia ainda que algumas famílias, a maioria de mulheres sozinhas com filhos e pais velhos, fingiam sair de casa. Passavam o dia todo trancados tentando não fazer barulho. Chamaram a polícia e a polícia arrombou todas as portas e vasculhou cada apartamento até achar os isolados. A criança na casa de máquinas do prédio foi a última a sair e realmente era bem curioso porque ninguém sabia de quem era aquela criança. Era muito choro. Algumas mulheres, especialmente as mais velhas, estavam nuas ou com roupas rasgadas. Outras apenas olhavam para o chão pensando o que poderia acontecer se colaborassem mas ninguém sabia exatamente qual era a punição porque, de novo, não há nada de oficial explicando o que fazer. As pessoas estão se resolvendo da forma que julgavam melhor. Os policiais estavam ali porque alguém caguetou os isolados mas não pareciam obedecer alguma ordem em especifico. A última criança chorava muito, ninguém aguentava mais. Pessoas dos prédios vizinhos gritam pedindo para calar quem está desobedecendo as ordens de circulação. O policial ficou irritado, as mães choravam cobrindo o corpo nu, suplicavam pela criança escondida na casa da máquina com a máscara encharcada de lágrimas e ranho de criança, aqueles bem mucosos e consistentes. Talvez o policial chorou também mas não havia muito o que fazer, talvez ele estivesse com medo de sofrer penalidades do seu colega de batalhão ou de alguém com mais poder de fogo que estivesse assistindo. Por isso ele optou em apertar o pescocinho da criança até fazer um estalo, parecido com madeira quebrando até a criança parecer que estava dormindo tranquila, como se nunca tivesse saído da casa de máquinas. Na certa, amanhã, ninguém mais estará isolado nesse prédio. E a rua ficou em silêncio depois que a polícia foi embora. A criança ficou lá até alguém chamar um carroceiro para levar o corpo pra vala pública perto da Sé. Até hoje não se sabe quem era a mãe.

--

--

Joëlle-Marie Declercq

Gosto de escrever sobre pessoas ruins e situações desagradáveis.